Para entender o pecado e o valor da Reconciliação


A ânsia de conhecer melhor e de compreender o homem de hoje e o mundo contemporâneo, de lhe decifrar o enigma e desvendar o seu mistério, de discernir os fermentos de bem ou de mal que nele se agitam, leva muitos, já há um certo tempo, a fixar no mesmo homem e neste mundo um olhar interrogativo. É o olhar do historiador e do sociólogo, do filósofo e do teólogo, do psicólogo e do humanista, do poeta e do místico; e é, sobretudo, o olhar preocupado, se bem que carregado de esperança, da Igreja. Como os outros olhares, também o olhar da Igreja descobre, infelizmente, entre diversas características do mundo e da humanidade do nosso tempo, a existência de numerosas, profundas e dolorosas divisões.
Nesse sentido, para refletir sobre o pecado, sem negar a importância do objeto, deve-se perguntar pelo sujeito. As mudanças e, principalmente, a mudança de consciência ocorrem constantemente, por isso a gravidade de um ato não se mede apenas pela consideração objetiva, mas a partir do sujeito responsável. Esse acento ao sujeito responsável tem fundamento bíblico: o mal é colocado no coração do homem. Um ato em si pode receber diferentes qualificações, dependendo da situação, da cultura e da motivação do homem.
Nenhuma pessoa é plenamente livre, ela está sempre marcada pela situação familiar, cultural, religiosa, etc. Em meio a esses elementos a pessoa vai fazendo seu caminho e construindo sua personalidade moral, optando por umas coisas e negando outras. Do mesmo modo diante de Deus que propõe e solicita uma resposta. Sabe-se que o homem não é um ser dividido em compartimentos, mas está envolvido num processo vital, ora de crescimento, ora de deterioração. Sendo assim, a Teologia Moral procura ler o pecado dentro de uma categoria mais globalizante, ou seja, é o homem todo que aceita ou recusa a salvação proposta por Deus.


A opção fundamental é uma orientação de vida e esta vai sendo revelada pelo conjunto da vida da pessoa. Por conseguinte, pressupõe um crescimento progressivo com o “apoio” da Teologia Moral que tem como objetivo oferecer subsídios para que o homem opte fundamental e conscientemente por Deus. No entanto, em cada pessoa aparecem algumas encruzilhadas que a desviam do reto caminho, rompendo a Aliança de amor com Deus. Aí a pessoa é convidada à reconciliação, contudo, esta não poderá ser menos profunda do que se apresenta a divisão. A nostalgia da reconciliação e a própria reconciliação serão plenas e eficazes, na medida em que atingirem - para curá-la - a dilaceração primordial, ou seja, o pecado.
Podemos falar da tríplice denominação do pecado: mortal, grave e venial. O peso da matéria fica claro quando confrontado com os mandamentos, sobretudo os expressos na forma negativa. Mas também mediante atos que por si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias e intenções, são sempre gravemente ilícitos em virtude do seu objeto. Quanto ao conhecimento e consentimento, é preciso ter presentes as atenuantes provindas da ignorância involuntária, do impulso das paixões, das perturbações psicológicas e mesmo das pressões externas. Não pode, contudo, serem consideradas como atenuantes a ignorância afetada e o endurecimento do coração, estas não só não diminuem, mas aumentam o caráter voluntário do pecado.
Por conseguinte, chamamos pecados mortais aqueles que se colocam como pecados capitais, ou seja, vícios arraigados que geram outros pecados, obscurecem a consciência, promovem a injustiça ou a negação da misericórdia de Deus (pecado contra o Espírito Santo). Pecados graves atingem o cerne da pessoa, rompem a amizade com Deus, mas não de forma definitiva e total. Exige profunda conversão para não terminar numa recusa total à graça de Deus. E, finalmente, o pecado leve ou venial que contraria a opção fundamental, não rompe com a graça santificante nem priva da amizade com Deus, mas está presente pela fragilidade humana pecadora e não podemos nos acostumar com este, pois pode ir se acumulando e se tornando uma “bola de neve” e agravando a matéria. Por isso, em qualquer matéria, devemos estar vigilantes e buscarmos nos reconciliar com Deus constantemente.
São João afirma: «se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós próprios e a verdade não está em nós. Mas, se confessarmos os nossos pecados, Ele que é fiel e justo perdoar-nos-á os pecados». Reconhecer o próprio pecado, ou melhor reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus. O mistério do pecado é formado por uma dupla ferida, que o pecador abre no seu próprio seio e na relação com o próximo. Por isso, pode-se falar de pecado pessoal e social: todo o pecado sob um aspecto é pessoal, e todo o pecado sob outro aspecto é social, porque tem também consequências sociais.


O mal existe não por causa de Deus, mas por causa do homem. Sendo assim, como o que somos não se esgota na percepção consciente de nossa biografia, mas se estende à humanidade, o mesmo acontece com o pecado social. Desse modo, podemos definir o pecado social como um mal humano que adquire uma existência exterior à consciência dos indivíduos e impondo-se a ela. Podemos perguntar: até que ponto somos culpados? Conhecendo melhor a sociedade temos mais chances de intervir nela e modificá-la. Por isso a ciência alarga o campo da consciência: quanto mais conhecemos, tanto mais podemos e ainda mais devemos. Assim, enriquecemos nossa subjetividade, dilatamos os espaços da nossa ação e tornamo-nos sujeitos da nossa história.
A vocação primordial do homem é formar comunhão. Quando criado por Deus, recebeu a missão de crescer, multiplicar-se, dominar e submeter a terra. Por conseguinte, não deve se deixar dominar por nada neste mundo, nem se preocupar tanto com Deus ao ponto de se esquecer da sua vida e dos irmãos. Ao contrário, deve realizar-se nesta tríplice dimensão: como filho, como irmão e como senhor diante de Deus e do universo. Ele peca quando fecha-se em si mesmo e nas criaturas transformando-as em obstáculo à transcendência, nega sua finitude e sua própria realidade; peca quando fecha-se aos outros e ao mundo, cultivando o individualismo, o egoísmo e ao invés de ser-com-os-outros torna-se contra-os-outros; peca quando fecha-se para Deus, alienação à verdade de Deus, não tem ouvidos para o chamado do Reino nem olhos para ver as obras de Deus, recusa o amor de Deus e, por conseguinte, a vida plena e feliz.


A partir do Evangelho lido na comunhão eclesial, a consciência cristã adquiriu, no decurso das gerações, uma fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado; a isto chamamos: o sentido do pecado. A consciência moral do homem é como que o seu termômetro. Entretanto, não raro no decurso da história, por períodos mais ou menos longos e sob o influxo de múltiplos fatores, acontece ficar gravemente obscurecida a consciência moral em muitos homens. Conjuntamente com a consciência, fica também obscurecido o sentido de Deus, e então, perdido este decisivo ponto de referência interior, desaparece o sentido do pecado. Por que este fenômeno no nosso tempo?
Primeiro o ‘secularismo’, que, pela sua própria natureza e definição, é um movimento de ideias e de costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente, concentrado só no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez do consumo e do prazer. No entanto, “o homem pode construir um mundo sem Deus, mas esse mundo acabará por voltar-se contra o mesmo homem”. Desvanece-se este sentido do pecado também pelos equívocos em que se cai ao apreender certos resultados das ciências humanas. Com base em algumas afirmações da psicologia, a preocupação de não tachar alguém como culpado nem pôr freio à liberdade leva a nunca reconhecer uma falta. Por indevida extrapolação dos critérios da ciência sociológica acaba-se por descarregar sobre a sociedade todas as culpas, de que o indivíduo é declarado inocente.
Uma certa antropologia cultural, à força de aumentar os condicionamentos e influxos ambientais e históricos, aliás inegáveis, agem sobre o homem, limita-lhe tanto a responsabilidade que não lhe reconhece já a capacidade de fazer verdadeiros atos humanos e, por consequência, a possibilidade de pecar. O sentido do pecado decai facilmente, ainda, sob a influência de uma ética que deriva dum certo relativismo historicista. Trata-se de uma verdadeira «reviravolta e derrocada dos valores morais». O efeito desta reviravolta ética é sempre também o de mitigar a tal ponto a noção de pecado, que se acaba quase por afirmar que o pecado existe, mas não se sabe quem o comete. Por fim, esvai-se o sentido do pecado quando - como pode acontecer no ensino aos jovens, nas comunicações de massa e na própria educação familiar - esse sentido do pecado é erroneamente identificado com a simples transgressão das normas e preceitos legais.
Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do sentido do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado por outros exageros. Assim, da atitude de ver o pecado em toda a parte, passa-se a não o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado. Infelizmente, não há duvida de que o homem de hoje perdeu largamente o sentido do pecado. Restabelecer o justo sentido do pecado é a primeira forma de combater a grave crise espiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas, para reconquistar esse sentido, não basta batermos na tecla do pecado, nem reinterpretá-lo mais antropologicamente. O sentido do pecado só se restabelecerá com uma chamada de atenção clara para os princípios de razão e de fé, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou. Faz-se necessário reconquistar a experiência do Deus vivo e verdadeiro que ainda nos fala, nos ama e nos quer amigos e companheiros no amor.


Referências:
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 1999.
JOÃO PAULO II. Reconcilitio et Paenitentia. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1985.
JOÃO PAULO II. Veritatis Splendor. 9.ed. São Paulo: Paulinas: 2009.
MOSER, Antonio. O pecado ainda existe? Petrópolis: Vozes, 1976.


Edir Martins Moreira,
Estudante do 3º ano de Teologia no Seminário de Mariana,
realiza trabalho pastoral na Paróquia Santa Efigênia


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