A BÍBLIA E A CONSCIÊNCIA SOCIAL: UMA REFLEXÃO PARA O MÊS DA BÍBLIA DE 2011
Edir Martins Moreira*
A Bíblia é o nosso Livro Sagrado e deve estar em nossas mãos e em nosso coração todos os dias. Todavia, no mês de setembro, a nossa Igreja no Brasil celebra o “Mês da Bíblia”, tempo propício para aprofundarmos ainda mais sua leitura e meditarmos sua mensagem. Pois, “desconhecer as Escrituras é desconhecer o próprio Cristo”, assim assevera São Jerônimo.
Neste ano de 2011, a leitura proposta é Ex 15,22-18,27, daí o tema: Travessia – passo a passo, o caminho se faz que nos motiva a descobrir os passos da caminhada a ser percorrida por nós que somos hoje o Povo de Deus fazendo a nossa travessia neste mundo. E o lema: “Aproximai-vos da presença do Senhor!” (Ex 16,9), que nos impulsiona a manter vivo o desejo de experimentar a presença de Deus que nos ama, ilumina e guia nossos passos pelos caminhos da vida.
Com a proposta deste “estudo-meditação”, a Igreja pretende animar a caminhada das nossas comunidades; incentivar a partilha da vida e da fé; suscitar ações solidárias; iluminar o itinerário da vida cristã e promover a união das famílias e comunidades. A temática do ‘caminho’ está presente em toda Bíblia. No Evangelho de Lucas, Jesus está sempre a caminho e, segundo Atos dos Apóstolos, ser cristão é fazer parte do “caminho” (Lc 9, 53-57; 10,1; At 9,2; 19,9). Nossa fé nos dá a convicção de que, neste mundo, somos “hóspedes e peregrinos” sempre a caminho.
Podemos considerar a experiência do Egito como uma constante tensão (Deus se esqueceu do povo) e, ao mesmo tempo, uma distensão (Deus se lembra da promessa). Muitos estudiosos da Bíblia ou teólogos já se adentraram numa exploração do Êxodo, relacionando-o com o novo caminho de "libertação" presente na América Latina.
Trata-se de um evento querigmático, provocador, criativo. O Êxodo é o acontecimento-chave, que modela a fé de Israel. Em todas as religiões, a cosmogonia exerce uma fascinação dramática. É forte o prestígio das origens, contudo, para além dos fenômenos do mundo físico, a cosmovisão hebraica constrói um outro epicentro: o acontecimento salvífico do Êxodo. O Êxodo, como fato histórico e salvífico, é tão original que atrai para si a experiência da criação. Por conseguinte, ele se converte em uma "reserva de sentido" inesgotável.
Uma chave hermenêutica importante: toda experiência humana gera sua "palavra". Sabemos que um acontecimento não é visto como decisivo na história de uma pessoa ou de um povo no momento em que acontece, mas depois de certo tempo, logo após ter "doado" sua energia recriadora. Isso fica claro em nossas experiências pessoais que estão cheias dessas manifestações de sentido. O êxodo é o acontecimento programático da experiência religiosa de Israel e que pode inspirar a vivência de fé de muitas outras pessoas que nele se aprofundarem. Além do mais, inspira correntes teológicas, como por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina, que visam a promoção da vida humana, lutando contra qualquer forma de escravidão e de exploração.
Esse é o exemplo de um acontecimento como outros fatos históricos que são vividos por minúsculos grupos humanos, cientificamente determinados, mas que dão origem à descoberta, por trás deles, de uma presença de Deus agindo amorosamente em vista de sua libertação. Toda exploração vem acompanhada de uma prepotência infame. A alienação dos hebreus chega a tal ponto que eles se tornam incapazes de esperar a salvação. Não se trata de uma infidelidade à graça, mas de uma alienação total do homem, que anula a própria esperança, última possibilidade de libertação. Muitas pessoas não são capazes de reconhecer suas próprias capacidades e se tornam alheias a sua realidade, com isso tantas “abominações” acontecem, “pessoas erradas” assumem o poder, porque aqueles que deveriam assumir determinada função não a fazem. É possível que esta frase seja vista por alto, mas nela está imersa toda uma violência aniquiladora, quando a redescobrimos em tantos casos concretos: o oprimido se "integra" de tal maneira com o opressor e em sua própria situação de oprimido, que não imagina outra possibilidade que o "liberte".
O alienado não somente não tem consciência do que pode "ser" ou fazer, mas aceita a idéia de que as coisas não podem ser de outra maneira. O êxodo engendrará a consciência de liberdade do povo de Israel. Este relato é interpretação do acontecimento. É para dramatizar a presença do Deus libertador. Podemos considerar a libertação dos israelitas do Egito como um acontecimento de âmbito político e social. Deus não começou salvando em nível espiritual, nem sequer de pecado. Salva o homem total, cuja realização humana pode ser impedida não só por ele mesmo, mas também pelos outros homens que abusam do poder ou de seu "status" social.
O clamor indica que o povo começa a conscientizar-se e, portanto, começa a trilhar o caminho da libertação. Quando clama eleva seu grito de protesto e denúncia. Na narrativa do êxodo, a força de Deus foi superior à do faraó. No entanto, hoje, existe uma consciência muito clara de que, além da graça de Deus, não há uma força superior à do povo unido e comprometido.
A fé bíblica, que não é intelectual, mas dinâmica e existencial, se expressa em várias dimensões: fé-reconhecimento de Deus, fé-compromisso à Palavra, fé-força no testemunho, fé-abertura ao dom de Deus e fé-aceitação do enviado. Nossa história teve e tem, sem dúvida, “novos” Moisés que dizem sua palavra de conscientização libertadora. Fica uma questão para pensarmos: tem alguém disposto a ouvir?
A consciência de liberdade de Israel, depois de refletida e amadurecida, se eleva à categoria de mensagem para todo homem. Contudo, se a liberdade é um dos valores intrínsecos do homem, por que, principalmente, na América Latina, às vezes, nos fazemos tão alienados a ponto de não vermos os sinais dos tempos, que mostram claramente o caminho da libertação? Quantas vezes insistimos em estruturas e discursos que não conseguem responder à problemática do contexto ao qual estamos inseridos?
O nome “Israel” quer dizer: Deus luta. Isto explica a origem deste povo, no campo de batalha, lutando, em nome de Deus, pelo sonho de uma vida digna e feliz, numa terra livre. O que une esse povo em marcha é o desejo de sair da condição de escravidão e opressão do pecado e da corrupção e viver em liberdade, plena felicidade de filhos de Deus.
A prática do amor, num contexto de opressão, exige luta. Todo caminho de libertação se realiza quando se suprime o poder opressor e se instaura outro poder, o salvífico. A justiça é um bem radical, que reclama do amor uma “atitude violenta”, ou seja, deixar o comodismo de lado e ousar fazer diferente diante do novo que se apresenta. A liberdade é um dom tão íntimo e exigente que, quando está obscurecida ou perdida, procura a libertação a qualquer custo. O Deus da paz é antes o da justiça e da liberdade. A paz é pecado quando serve para manter a injustiça. A comunidade dos filhos de Israel enfrentou desafios: falta de água saudável, falta de alimento, falta de organização, ameaça de inimigos. Teve momentos de crise, muita murmuração, dúvidas e até revolta contra Deus. No entanto, em cada etapa, soube enfrentar os problemas, passo a passo, sem deixar de avançar em busca da terra da promessa.
É necessário olharmos as etapas da travessia desértica do Povo de Deus, saindo do Egito e buscando a Terra Prometida: as dificuldades enfrentadas pelo Povo de Deus, tanto os problemas da natureza, quanto os desafios oriundos pela convivência humana, criaram a necessidade de enraizar e vivenciar a fé, a esperança e o amor em Deus. Queremos aprender com o Povo de Deus a realizarmos a nossa travessia de discipulado e missão. Porque, com a “travessia, passo a passo, o caminho se faz”. Mas, o fundamental em tudo isso, é estar próximo ao Senhor.

Referências
CROATTO, J. Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981.

*Seminarista do 3º ano de Teologia no Seminário de Mariana, realiza trabalho pastoral na Paróquia Santa Efigênia.

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