Ao tomar
conhecimento do Hino da Campanha da Fraternidade de 2014, composto por Roberto
Lima de Souza e selecionado pela CNBB, causou-me estranheza e perplexidade a afirmação
contida na terceira estrofe. Colocando em relevo a dramática situação de
milhares de pessoas que são vítimas do tráfico humano, o autor afirma: “E
quantos chegam a perder a dignidade,
sua cidade, a família, o seu valor”.
Posteriormente, lendo o texto base, fiquei igualmente assustado com a seguinte
afirmação: “o tráfico humano é um crime multifacetado, altamente lucrativo, de
baixíssimo custo e de poucos riscos aos traficantes em que a vítima tem a sua
dignidade aniquilada, sem ter como
enfrentar e lidar com a situação em que foi submetida...” (Texto base, nº 3). É possível a pessoa humana perder a sua
dignidade e o seu valor por ser vítima de uma situação de opressão e
exploração? É possível aniquilar (reduzir a nada) a dignidade da pessoa humana?
Estou entre os que duvidam disso.
A reflexão que agora apresento não
deseja ser uma afronta arrogante ao compositor da canção ou aos autores do
texto base da CF 2014. Analisados na sua inteireza, tanto o hino quanto o texto
base são preciosos instrumentos para se pensar a questão em pauta: o tráfico
humano. Portanto, este artigo é apenas expressão da preocupação e angústia
intelectual de um estudioso que acredita que toda antropologia fragmentada ou
deturpada pode levar a uma postura ética relativista e a uma eclesiologia desvirtuada.
Como professor de Antropologia Filosófica,
tenho feito um percurso árduo e academicamente exigente com os alunos, buscando
os fundamentos ontológicos do valor e da dignidade humana, amparado por
pensadores da tradição filosófica de cunho personalista. Apesar da complexidade
do tema em questão, todo o esforço reflexivo aponta para uma constatação
filosófica básica e racionalmente aceitável: a dignidade humana se fundamenta
na própria estrutura constitutiva da pessoa humana, é algo inerente à sua
própria condição. É em virtude daquilo que diferencia substancialmente a pessoa
humana dos demais seres, ou seja, a sua racionalidade, liberdade,
interioridade, abertura, consciência, que podemos afirmar que ela possui
ontologicamente valor e dignidade. Toda pessoa humana, independentemente do
contexto cultural, social, histórico e existencial na qual está inserida, pelo
simples fato de ser pessoa humana, já é ser de dignidade e de valor. Assim como
não existe mais pessoa ou menos pessoa, também não existe algum ser humano que
tenha mais ou menos dignidade. Ser pessoa humana é ter dignidade.
Quando uma pessoa humana é
desrespeitada nos seus direitos, explorada, escravizada, injustiçada,
desvalorizada ou discriminada, como é o caso da vítima do tráfico humano, isso
não significa que perdeu a sua dignidade e o seu valor, na verdade, eles não
foram reconhecidos, não foram respeitados, mas ela continua ser de dignidade e
de valor. A dignidade humana “não é uma realidade concedida por alguém ou por
alguma instituição, seja ela civil ou religiosa. É uma realidade que deve ser
reconhecida e respeitada. Pode-se violar, vilipendiar, agredir, atentar contra
a dignidade da pessoa humana, mas não roubá-la ou aniquilá-la. Pode-se
reconhecê-la e valorizá-la, mas não concedê-la” (SILVA, Edmar José. Provocações éticas. 2ª ed., Mariana: ed.
Dom Viçoso, 2014, p. 74). A pessoa humana
possui um valor intrínseco, imanente, que advém da sua própria essência ou
natureza. Portanto, ninguém ou nenhuma realidade extrínseca pode roubar ou
aniquilar o seu valor e a sua dignidade. Afirmar que uma pessoa perde a
dignidade por ser vítima de uma situação social degradante é oferecer munição
ideológica para os insensíveis oportunistas que desejam explorá-la ainda mais.
É também um perigo, pois pode levar a uma postura objetivante nas relações
intersubjetivas.
A reflexão feita até o momento é de
cunho filosófico, mas as afirmações contidas no hino e no texto base da CF 2014
merecem também uma consideração na perspectiva teológica. Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, na
parte I, no capítulo I, no número 12, os padres conciliares evidenciam que a
dignidade humana reside no fato do ser humano ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus, capaz de conhecer e amar seu criador e estabelecer comunhão
fraterna. Portanto, é algo estrutural, dado por Deus, faz parte da condição não
somente criatural, mas também filial do ser humano. Também no Catecismo da
Igreja Católica, no número 358, encontramos a afirmação: “A dignidade da pessoa
humana radica na criação à imagem e semelhança de Deus”. O próprio texto base
reconhece que a dignidade humana é uma “qualidade intrínseca e inseparável de
todo e qualquer ser humano. Todo indivíduo tem a dignidade de ser pessoa humana
somente pelo fato de existir” (Texto-base, nº 228). A partir destes textos do magistério, podemos
afirmar categoricamente que a dignidade e o valor do ser humano são
intrínsecos, conaturais à sua condição, foram concedidos por Deus no ato da
criação. Portanto, afirmar que uma pessoa humana perde o seu valor e a sua
dignidade ou que estas realidades são aniquiladas por causa da exploração a que
está submetida, significa afirmar que em virtude de fatores extrínsecos, a
pessoa humana deixa de ser criatura especial, perde a sua condição e o seu
estatuto ontológico de filho (a) de Deus, o que teologicamente é um absurdo.
No campo jurídico, político e social
a reflexão caminha na mesma direção. A Constituição Federal Brasileira (1988),
no art. I, inciso III, estabelece que a dignidade é é um dos fundamentos do
Estado Democrático de direito e o valor unificador de todos os demais
direitos. Comentando a concepção de
dignidade na Constituição brasileira, o doutor em Direito Ingo Wolfgang Sarlet declara:
“Temos por dignidade a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado”. Também a ONU, na Declaração dos
Direitos Humanos (1948), afirma no artigo I: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos” (artigo I). Como se percebe, tanto a carta magna que rege a sociedade
brasileira, quanto o documento que visa garantir os direitos humanos,
reconhecem que a dignidade humana é algo intrínseco, inato e inerente a todo
ser humano, portanto, não pode ser relativizado.
Para se falar em valor e dignidade
humanos, devemos estar atentos para os princípios que fundamentam a nossa
compreensão destas radicais realidades antropológicas. A sociedade atual,
ancorada na busca vertiginosa pelo progresso técnico- científico, tende a
fundamentar o valor da pessoa humana na sua capacidade produtiva. Quando mais se
produz, mais valor a pessoa adquire. Neste sentido, os idosos, doentes,
crianças, portadores de deficiência física e mental são considerados pessoas de
menos valor, porque não possuem condições de corresponder às expectativas
mercantilistas e produtivas do mercado. Existem alguns ainda que tendem a
fundamentar a dignidade da pessoa humana a partir da função e da posição social
que ela ocupa: quanto mais alta a função e o padrão de vida, mais a pessoa é
valorizada e respeitada. Tudo isso é indício de uma concepção empobrecida e
deturpada antropologicamente. Por isso, devemos estar atentos na busca de uma
fundamentação ontológica e metafísica para o tema da dignidade humana, para não
compreendê-lo e tratá-lo ao sabor de fatores sociais, culturais, existenciais
ou econômicos. Todos estes fatores interferem no modo como nos relacionamos com
a pessoa humana, mas nenhum deles aniquila ou tira o seu valor e a sua
dignidade. Portanto, toda pessoa humana, independentemente da sua origem, cor,
raça, religião, sexo, idade, estado civil, profissão, condição econômica,
situação moral, condição social ou existencial, é ser de valor e dignidade e
nada e ninguém pode roubar ou aniquilar esta sua realidade constitutivo-
estrutural.
Conclusão: temos que ter cuidado com
certas afirmações aparentemente inocentes, mas grávidas de possibilidades
antropológicas deturpadas e/ ou destrutivas.
Pe. Edmar José da Silva
0 comentários:
Postar um comentário